04/05/2021
Mais uma história da série Contos do Despertar
Subitamente Helena acordou sozinha em sua cama de casal. Por um momento, imaginou ter ouvido o som dos risos das crianças e os latidos dos cães. Pura ilusão, um silêncio assustador dominava o ambiente.
Levantou-se lentamente, com aquela estranha sensação de vazio, o peito dolorido e o corpo cansado de tanta saudade de uma vida inteira, que havia virado fumaça nos últimos anos. Primeiro perdeu o marido, vítima de ataque cardíaco. Depois, pouco a pouco, os quatro filhos foram saindo de casa: as duas mais velhas, casadas com americanos morando nos EUA e os dois rapazes, apaixonados por esporte, estudando e surfando na Austrália.
Sem a presença do companheiro de tantos anos e dos filhos e netos, sua casa enorme mais parecia um mosteiro budista, silenciosa, triste, fria.
O médico a havia aconselhado a se mudar para um apartamento perto de algum clube elegante, onde pudesse praticar esportes e fazer novas amizades, excursões com grupos de solitários, cantar em coral, fazer aulas de dança etc. “Não fique parada sofrendo e se lamentando, encontre atividades que preencham seu tempo de maneira útil e solidária, como participar de uma instituição de caridade ou apoiar pessoas doentes em um hospital.”
Helena ouvia tudo com imenso desânimo. Com sorte, teria mais uns 20 anos de vida ativa. Então, preencher o tempo, esquecer o passado, procurar divertimentos, eram frases que não faziam nenhum sentido. Ela pressentia que faltava alguma coisa essencial, como se algo que vinha de dentro estivesse pronto para se manifestar. Não sabia o que era e o que fazer, a não ser esperar.
Uma noite em que não conseguia dormir, ligou a TV em um canal qualquer, onde um monge hindu contava que, na Índia, muitos homens de família, quando chegavam a determinada idade, abandonavam tudo e seguiam um caminho espiritual, sob a direção de um guru. O estranho relato causou-lhe uma violenta comoção, que a fez chorar como criança. “Se havia um caminho para os homens de família, deveria existir também um para as mulheres de família”, pensou.
Helena, então, começou a pesquisar. São Paulo, a maior cidade do país, tinha de tudo e todas as coisas. Em algum momento, haveria de encontrar seu verdadeiro lugar no mundo. Visitou escolas de várias tradições, hindus, cristãs, budistas, tibetanas, até que um convite para uma peça teatral sobre a história de Eros e Psiquê abriu as portas que ela tanto esperava para uma vida nova, onde poderia renascer das cinzas como a Fênix.
Após a linda apresentação, um homem que todos reverenciavam passou a responder a perguntas da assistência e sua presença, sua voz, seu sorriso, fizeram seu coração vibrar de alegria. Uma espécie de êxtase a envolveu como se fosse o manto sagrado de um deus generoso e compassivo. Aquele encontro transformou sua vida solitária e triste na mais incrível aventura de autoconhecimento e iluminação, em que aprendeu a mergulhar diariamente nas profundezas culminantes da Alma.
Helena viveu mais 20 anos de intenso caminho interior e morreu em plena consciência, com um sorriso de beatitude e de paz profunda. Em sua lápide ela pediu que escrevessem:
“Vivi cada momento como se fosse o último e o último como se fosse o primeiro.”
Carmem Carvalho e Marian Bleier