23/09/2025
"Nós somos porque ela foi"
Por Mariana Marçal
Há alguns anos despertei para os caminhos da espiritualidade e da ancestralidade. Nesse processo, compreendi que o terreiro é um quilombo contemporâneo e que o candomblé, para seus praticantes, representa a força capaz de reconstruir histórias dissolvidas pela escravidão.
Mas conheci Mãe Alcina muito antes dessa consciência, ainda jovem, sem saber nada sobre o candomblé. Mesmo assim, tudo naquela alma generosa me despertava interesse.
Foi ela quem trouxe para a política de Cotia debates fundamentais sobre religião, intolerância e ação social — pilares que sempre sustentaram sua trajetória dentro e fora do terreiro. Graças à sua atuação, o candomblé fincou raízes na cidade, criando vínculos identitários, familiares e comunitários.
Na verdade, primeiro conheci o Instituto Gira-sol e só depois Mãe Alcina. E foi ao ver vidas transformadas pelo seu trabalho que compreendi a dimensão de seu reconhecimento.
Participei de feijoadas, eventos e homenagens em sua honra. Em muitos deles, beijava suas mãos sem entender exatamente o significado desse gesto, mas sentindo, no fundo, que havia algo maior. Hoje, após sua partida e já iniciada no candomblé — além de estudiosa da cultura africana e da filosofia hindu — compreendo a ancestralidade que me ligava a ela. Mãe Alcina já enxergava meu caminho, mesmo quando eu ainda não podia imaginá-lo.
Sempre acompanhei o trabalho do Baba Robinson à frente do Ilê Asè Aiye Sango Oju Ewa. Unidos por amigos em comum e pela luta por uma cidade mais justa, observei de perto o esforço para manter viva a Casa após a passagem de Mãe Alcina.
A celebração que sucedeu as obrigações de julho — mês de grande responsabilidade para pais, mães e filhos da Casa — foi marcada por emoção profunda. Ali, todos, crianças, jovens e adultos, celebravam mais um odun de vida em Xangô com entrega total.
Ver aquela família unida na fé e no legado da Mãe Alcina foi inesquecível. Um testemunho de que, no candomblé, presente, passado e futuro não se rompem: tudo é continuidade. Nos cânticos daquela noite, ecoava forte a certeza: “Nós somos porque ela foi.”
Mãe Alcina permanece viva entre nós. Sua memória resiste. Seus filhos de santo e de sangue seguem honrando sua história e seu legado. Ela mudou de plano, mas continua presente.
Enquanto houver fé e a tradição oral do candomblé permanecer firme, o Ilê continuará batendo cabeça para ela, para a eterna Mãe Alcina de Cotia.
Mariana Marçal
Jornalista, professora de yoga e filha de Obà