09/04/2020
Da Série “Contos do Despertar” do Grupo Gurdjieff Granja
Viana
Quando anoitece, já cansado de ficar de pé e gritar por socorro, ele se senta e aguarda. Ninguém à vista, nenhuma ajuda. Ainda bem que ele tem um cantil de água cheio, além de um pacote com algumas bolachas e chocolates. A visão do corpo do companheiro morto o mantém em estado de alerta.
No dia seguinte, ele se alimenta e começa a refletir sobre sua situação. “Sou jovem demais para morrer nesta guerra estúpida, daria tudo para estar em casa com meus pais e minha namorada. Eu tinha tantos planos para o futuro, montar uma pequena loja de construção, estudar, casar, ter muitos filhos. E agora, meu Deus, como escapar desta armadilha do destino? Não posso caminhar e não posso continuar muito tempo neste lugar sem abrigo, sem água, sem comida.”
A noite do segundo dia fica mais difícil e assustadora, pois ele ouve o som de animais que podem se aproximar e fazer tudo explodir à sua volta. “Como é duro morrer longe de casa e da família, sem a possibilidade de um enterro digno!”
No terceiro dia o soldado está completamente exausto, tão cansado que já não consegue mais pensar. Fica muito quieto, silencioso, e uma tristeza imensa o faz chorar baixinho. Ao levar as mãos ao rosto, seus dedos tocam uma pequena corrente de ouro com um crucifixo, que sua mãe havia pedido que usasse o tempo todo no pescoço como proteção. “Sinto muito, mamãe, mas seu menino está condenado, aqui não há milagre, só há abandono, sofrimento e dor!”
No calor e na escuridão da terceira noite, sem lua, sem brisa, o soldado finalmente relaxa e aceita seu destino, sem nenhuma esperança de salvação. O sentimento de entrega lhe dá uma sensação agradável, uma espécie de conforto no coração. Está quase adormecendo quando seus olhos percebem uma luminosidade diferente em alguns pontos do terreno à sua volta. É muito, muito tênue, mas é real. Ele tira da sacola uma lanterna, um papel e uma caneta e começa a desenhar os pontos luminosos até perceber uma estrutura geométrica com distâncias iguais, um traçado lógico. Fica tão excitado que não consegue dormir pensando que talvez ali haja uma solução, uma saída para sua prisão.
Ao amanhecer do quarto dia, sob a luz do sol, ele examina o entorno a partir de seu desenho noturno e oh! que incrível, agora é possível perceber claramente uma diferença no terreno, com lugares em que a terra fora mexida e outros em que estava preservada. Os pontos luminosos pareciam assinalar exatamente a localização das bombas.
O soldado, então, se enche de coragem e deixando tudo para trás, armas e bagagens, começa sua jornada com a máxima atenção, pisando exatamente nos pontos onde a terra parece intocada. Cada passo é uma eternidade, cada passo é a morte ou a liberdade. Caminha assim cerca de 200 metros até perceber que o mapa da destruição terminara. Finalmente estava vivo e livre!
Agora com 96 anos, o soldado, transformado em um empresário bilionário famoso por construir hospitais e escolas para atender as comunidades carentes, ainda imerso em sua aventura do passado, acaricia a corrente de ouro com o crucifixo, enquanto finaliza sua narrativa, com um sorriso de encantamento:
"O verdadeiro milagre aconteceu dentro de mim, naquele dia. De joelhos, eu jurei que, se sobrevivesse àquela guerra, minha vida seria útil e benéfica para o maior número de pessoas possível. Desde então eu só vivo para agradecer, servir e amar!”
Carmem Carvalho e Marian Bleier